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domingo, 18 de setembro de 2011

A Mesa - Tapiraí/SP


Apocalipse II

Se o teu cartão de crédito é bloqueado após três tentativas erradas
O meu continua funcionando perfeitamente
Em cima da mesa, sobre a carteira, o RG, no banheiro
Onde dê sinal de alegria
Oro por ti, por mim você não ora e não há de orar
Estou perto de partir
A mesa
Posta
A viagem não feita
O perdão
Fecham um armarinho, não há linha, tinta, shorts
Chegam confecções chinesas pelo porto de Santos, do Rio de Janeiro guardo lembranças
O Evangelho no lar, o amargo do livrinho, o som incessante da guitarra que não para
Traço rotas, almoço buquês de casamentos, pétalas defloradas
Teço luvas, rezo um terço, meu coração inteiro
Continua a orar
Visito hospitais, praias, grutas sem iluminação, catacumbas
Abro túmulos
Vejo vermes, ouro, dentes
Observo o nascimento de Chica da Silva, a escrava excêntrica
Ordenho vacas e você só me observa quando faço a barba
Não percebes que o leite quente que tomas todas as manhãs despendeu minha força bruta
Não reparastes que estive lendo na poltrona, às dez da manhã, o livrinho
Que às onze fui na janela ver se havia algum sinal do tiê-sangue
Ao meio-dia fritei para ti um suculento bife acebolado, você se alimentou bem, dormiu
Às quatro comecei a descascar milho verde
Às nove fiz fogo, você dormiu
Te levei para cama, enxuguei tua febre
Orei
No dia seguinte fui embora para não voltar
O céu se fez em chamas, desfiz tuas lágrimas, fui motivo
Dos anelos de teus cabelos em brasa
Nossas camisas-de-força pelo chão de madeira do quarto
Tomei um banho demorado
Sobre a cama teu vestido de cambraia com cheiro de moça bonita
(Siriemas passeando pelo jardim)
Pelo Rio das Velhas passava um barco
A luz do sol batia no campanário, irradiava-se pela cruz
Enquanto você continuava a chorar, as larvas faziam seu minucioso trabalho de decomposição
Degradavam a blusa de flanela, costurada com linha do armarinho que fechou
Eu ali, mexendo o tacho repleto de açúcares e cítricos
O alarme disparou, o sino soou, o estampido de um tiro se ouviu
Só havia cinzas no local da fogueira
Não choveu
Na pequena venda da Cidade não vendiam mais óleo de candeia, de baleia, nem de citronela
Uni as mãos em prece e me ajoelhei
Pedindo nada
Recitando murmúrios baixos
Pensando onde estaria a faca, o lenço que enxugou tuas lágrimas
Estariam teus sapatos debaixo da cama?
No guarda-roupas, o que há?
E no baú?
Selarei meu cavalo e irei até a Cidade comprar alimento
Talvez no final da tarde ande pela mata para coletar lenha
Para que possa ter a luz da fogueira para ler o livrinho
Para que da minha boca possa sair mel.

sábado, 17 de setembro de 2011

Cachoeira do Chá - Tapiraí/SP


Apocalipse

Desculpe se adoro ganhar livros de presente em datas festivas
Você não deu
Volto impregnado de uma energia de jatobá, raízes aéreas
Fotos rasgadas, amores arquivados
Estava contigo no Congresso de Meio Ambiente, você se apresentava ao microfone
Cantava uma canção tão doce e tão triste
As meninas que estavam comigo logo abandonaram a platéia, insistiram para que eu fosse embora com elas
Hesitei e fui
Imediatamente você parou a canção e me encontrou atrás do palco chorando
Saiu pela rua e foi embora tentando pegar um ônibus, um táxi
Gritei teu nome, te chamei de volta
Você se foi
Logo encontrei um grupo de outras meninas que flertaram comigo pela calçada
Desde então meus sonhos têm sido assim, só provocação de fêmeas fatais
Belezas estonteantes
Beijos roubados, forçados, carinhos
Acordo e me deparo com o frio, o sol, a mata
Dirijo muito, dirijo demais
Quanto mais você destruir mais nervoso ficarei
Pisarei mais fundo no acelerador, em teus calos
Comi o livrinho, meu ventre se tornou amargo como fel
Mas as palavras que saem de minha boca são doces como mel
(Cai meteoro, cai satélite)
Alimento-me em casa de taipa
Relembro de teu óculos escuro
Translúcido
Teus dentes brancos que fazem meu coração insensível ficar um pouco menos frio
Vim da Alemanha, da Floresta Negra
Estabeleci sintonia com o samba, o negro, a feitiçaria da paixão
Ao amor incondicional indígena
Tenho cachos de anjo
Asas de nascituro que não voa
O tiê vermelho voa, mas não encontro indícios pelas trilhas
Fotografo tua alma
O tronco da árvore sangrando após o incêndio
As raízes aéreas do jatobá
A copa do cedro, o rubro bico-de-papagaio
Na casa de taipa como morangos silvestres, nêsperas, bolas brancas
Livrinhos de verdades incomensuráveis
O Cristo que te salva e te abençoa
As meninas bonitas que aparecem e te provocam arrepios no ouvido
As diversas camas em que repousa teu corpo e apenas repousa
A motosserra cantando, o carvão armazenado, o forno
Meus caracóis de anjo, leão
Quer ir comigo?
Não!
Não...
Vou (silêncio)
Televisão, ronco de motor, tua canção doce
Olhos derretidos, engavetamento de fotos, faça-me um café por favor
Passei o dia tão triste, pensando em te ligar, mas já não sei como, o que falar
Caminho com a espada em uma das mãos, o livrinho no ventre
Os olhos já não estão mais vendados apesar de que, quando me deito, as provocações das meninas lindas acontecem
Só param quando acordo, abro a porta de um quarto que não é meu e lá fora há neblina
Araucária angustifólia
Me convidam para a Serra das Mesas, a casa de taipa
Sinto desejo da Califórnia, de vinho ácido do deserto, bife na chapa
Mais um beijo, sapatos secos, calças justas
Um mapa e uma navegadora para singrar o mar
Como nêsperas mas não consigo te esquecer
Me alojo em topázios, esmeraldas
Você não está em brilhantes, cristais, sonhos tristes
Queimo poesias, ardo no mármore, no campo, na floresta verde
Acabo com a grafite e a dor com apenas um tapa
Em teu rosto de papel, teu vestido de cambraia coloco fogo
Caio em absolutamente todas as provocações
Admiro cabelos longos de sol
Preencho com álcool, céu
Sopro nuvens alvas para longe
Transpiro o psicodélico, todas as luzes do amor
Fecho a porta dos quartos que não são meus
Não há café, música, comida, luz
Água que desce da montanha
Chá quente de camelia sinensis
Mesmo assim encontro alguns regenerantes na mata, reconheço as folhas secas, tais quais a do livrinho
(Saudades de Alice)
O País é me coração
(Meus sonhos são somente provocação).