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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Sepultamento (A prosa, a fênix e o Homo spiritualis)

Venta muito na Ilha de Santo Amaro
Um vento gélido, cortante
A chuva bate pressurosa em minha barba grande
Branca pelo tempo
Pelos longos anos passados aqui
Na Ilha de Santo Amaro
Santo que desconheço
Há tantos, não?!
Numerosos seres que prestaram seu trabalho com amor e resignação
Neste orbe pouco evoluído
Ouço desde já os rumores de guerra
Os mesmos que as profecias nos alertaram há dois mil anos
João, transportado aos páramos celestes, escreveu as recomendações
E eles virão, para nosso próprio adiantamento moral
Lindo meteoro a trepidar na atmosfera
Tal qual as gotas da torneira da cozinha, nunca consertada
A caírem na louça suja e bolorenta, da idade de minha barba
Dos galhos secos das rosas no jardim
Enfastiado de tanta prosa
Triste pelas poesias sepultadas, que nunca renascerão
Arquiteto um plano
Penso, penso, penso...
Decido morrer no mar
Pouco me resta
Antigos retratos, um chevrolet camaro vermelho de brinquedo, presente de meu pai quando completei três anos
Um pião de madeira, com o bico quebrado
A escrivaninha, a pena amarelada, o tinteiro vazio...
Nada mais me resta, a não ser o mar
Mas também sinto o desejo, apesar da depressão que me assola, de que não seja qualquer mar
Relembro então de meus tempos de jovem
Da sala irregular da Universidade
Do azul-marinho da lousa
(Pedra tumular rasa, que assenta sobre a sepultura)
Das cadeiras azuis de plástico, de cor profunda
Do silêncio que nunca imperou
Lembro de um senhor que andava de muletas
Estampava em sua fisionomia um coração bom
Queria indagar-lhe quem era, o que pensava sobre a sociedade, a cultura, a caridade, a paixão
Um dia quis ajudar-lhe a vestir sua mochila, o que tentava fazer com dificuldade
Mas não soube como e fui embora
Nunca esqueci o dia em que o professor falou da existência dos sete mares do planeta
Alguns formados há muito tempo, outros mais recentes
Falou também:
“- Vai João!
Vai fazer poesia na vida.”
Inerte, nada fiz
Talvez hoje...
Decido então navegar, apesar da imprecisão
Escolher o mar mais bonito e nele descansar
Antes deveria conhecer todos
Remar
Remar
Só então naufragar
Meu barco caiçara, junção de canoa indígena com a popa portuguesa, chama-se Beagle
Lá está, na praia do Perequê
Anuncio por toda a Ilha de Santo Amaro o grandioso intento
Na data de partida todos se encontram a beira-mar
A arraia-miúda, o Prefeito, com seus longos bigodes afinados e o pince-nez de ouro
O Governador da Província, com sua calvície reluzente
Até mesmo o Imperador e a Imperatriz encontravam-se presentes
Proferindo ele um inflamado discurso, o qual dizia que nunca, na história deste Império, ninguém ousou realizar semelhante feito
Não dispensei muita importância, por achá-lo incongruente com os ideais antes prometidos
Na areia estavam também banqueiros, letrados, o Alferes-Mor, o Ouvidor, o Padre Domênico Rangoni
Todos diziam o último adeus
E assim parti para o infinito
Na noite da oitava lua adentrei o primeiro mar
Soprava uma brisa quente, quase um noroeste
Estava no mar de Copérnico
Senti o coração pulsar mais forte
Estaria lá mais próximo do centro do Universo?
Diziam ser o centro de uma grande bola de fogo
A espalhar sobre o planeta dos sete mares imensa luz abrasante
Fonte de vida e entendimento
Diziam até que a Terra girava ao seu redor, de acordo com o Heliocêntrismo
Percorri longa vastidão, mas nada encontrei
Regalava-me com a lua maviosa
Esta sim eu conhecia
Sabia que havia sido formada pelo choque de um grande meteoro com o Planeta Azul
Tão grande quanto o que se aproxima agora
Por isso os pólos do orbe são achatados e o satélite tem a mesma composição da matéria encontrada na Terra
Remo
Remo
E nada
Talvez o Mestre, com seu poderoso séquito de seres benevolentes e iluminados, que lá moram
Tenha levado o centro de fogo para longe
Talvez volte
Poderosos ventos insuflam minhas costas
Empurram o barco para o incerto
E navego rápido
A barba grande
Os lábios ressecados pelo sal
A companhia dos albatrozes
As unhas grandes e sujas
Espinhas dos peixes pescados pelo caminho
Degustados crus, ali mesmo
As reflexões não me assolam
Tudo é calmo e perfumado
A simbiose com o mar, o vento e o tempo
Faz-se completa
Relembro então sobre a promessa do surgimento da nova raça humana: o Homo spiritualis
Entro no mar de Darwin, o segundo
Evolução
Do Homo sapiens sapiens em mim nada há de restar
A matéria densa, o sentimento instintivo
Animalesco
O orgulho, o egoísmo
A alimentação carnívora, a guerra
Minha comunicação difícil, não-universal
A tudo desejo loucamente extirpar
Alimentar-me apenas de água e raios solares
Caminhar mais rápido que a luz, por longas distâncias
Sem qualquer barreira, impedimento
Comunicar-me telepaticamente, linguagem que todos entendam
Radiar apenas o amor, na sua forma mais pura e ampla
Quando?
No fundo do mar de Darwin?
Capitulando estes longos anos, quão caritativo fui?
Quão desprendido da matéria estive?
Sinto apenas vergonha de morrer aqui
Neste mar cristalino, a emanar eflúvios de evolução
Devo remar
Encontrar o mar adequado à minha condição decadente
Remar
Remar
Preparo meu concentrado ácido de cascas de limão e flor-de-lis
Adentro sem delongas o mar de Freud
Choro copiosamente com a aurora boreal
As estrelas cadentes, os diamantes reluzentes espalhados sobre a areia salgada
O silêncio
Bater de asas dos peixes-voadores
Eclipse lunar
(Tudo é noite)
O impossível desejo de evolução
Tantas e tantas vezes chamaram
Nunca fui e jamais irei
(Nunca!)
Internamente, eu
(O vazio de uma vida)
Alucinado, vou me embora
Demente
Remo
Remo
Remo
(Remo até não poder mais)
Já estou na trigésima terceira noite
Aproximo-me do mar da Informática
Atiro ao longe o astrolábio, o camaro vermelho, o binóculo e o GPS
(Nada mais me resta!)
Adiciono um pouco mais de fumo em meu cachimbo de nogueira
Fumo avidamente
Decepcionado com a feiúra deste mar
Dos polvos high-techs
Das aves de metal
Vento digital
(Empurra-me para longe, suplico!)
Durmo (não sonho)
Acordo com a visão de um grande cogumelo de fogo
O estampido ensurdecedor
São seres humanos testando bombas atômicas no mar Biológico
O cheiro de destruição a tudo invade
Vislumbro a psicosfera da Terra ser destruída
Sinto o câncer invadir minha pele queimada de sal
Ao redor do Beagle, clones de tubarões idênticos cercam e acuam
Arraias fluorescentes emanam intenso brilho
Fetos mortos bóiam ao lado de pedaços de cordões umbilicais
Pacotes de fortes fertilizantes são levados pela maré
Enquanto espigas de milho geneticamente modificados pairam na superfície da água
Remar é preciso
Necessito urgentemente afastar-me deste local
Desfaleço
Recobro as forças para remar
Avisto ao longe uma ilha
Repleta de lêmures, dragões-de-komodo
Tentilhões, aves-do-paraíso
Tiês-sangue, palmitos juçara
Ora-pro-nobis, ar limpo
Água doce, gaivotas
Enormes robalos, siris de um azul sem igual
Verde mar Ecológico
Aqui, neste recanto de paz
Onde a natureza fervilha, quero morrer
Mas antes necessito conhecer o mar das Mulheres
Comparar, ter a certeza de que meu corpo fatigado irá descansar bem
Já ao me aproximar, sou acolhido pela inconstância das ondas
Chacoalhando a proa, todo meu ser
Flores das mais variadas espécies e matizes flutuam
O perfume é inebriante
As formas curvilíneas das nuvens embalam os mais recônditos desejos
Relembro da minha falta de sorte com as mulheres
Dos amores imperfeitos
O desprezo por me atirar incauto
O velho jargão, quem eu amei nunca me amou
Quem me amou, eu pisei
Frustrado por não ter uma família, uma rotina normal
Preparar o café cedo, na casa do campo
Para a esposa querida que saía para trabalhar
Enquanto o dia-a-dia era gratificante
Cuidar dos filhos, levá-los à escola
Preparar o almoço, a janta
Lavar, passar, bordar com a lã alva das ovelhas perdidas    
Nada disso tive
Gostava mesmo das putas da zona portuária
Com o seu amor fácil
Seus corpos em movimento
O não-beijo, a incompletude
As paixões fugazes
Mamilos rígidos, dourados
Navego e penso
Saudades de Isabel
Onde estará agora?
A última visão que tive com o olho esquerdo
Foi Vênus piscar no céu
De repente, não mais que de repente
Um albatroz, em vôo despretensioso
Investe sobre meu rosto com grande velocidade
Em uma bicada voraz arranca minha vista
Que sangra
Sangra
Sangra
(Hemorragia)
Vã pretensão navegar e fazer poesia
(A poesia morreu!)
Já é hora de voltar ao mar Ecológico, o Paraíso
Lá findar o que não se completou
É necessário abandonar o mar das Mulheres, não deixar as reminiscências putrefarem a mente cancêriginosa
A dor torna-se cada vez mais insuportável
A hemorragia é intensa
Com todas as forças
Remo
Remo
Remo
As noites passam longas
Desconheço os mares
Desfaleço
Meu espírito cansado, lentamente se desprende do corpo
Ali mesmo, em meu veleiro de sonhos
Mar nenhum me terá
(Nenhum!)
Já no plano espiritual
Observo a chegada do Beagle
Carregando valente a matéria em decomposição
Na praia, Ilha de Santo Amaro
Grande multidão invade as areias
São txucarramães, tupiniquins, bororos, apóstolos, letrados, coronéis
Árcades, escultores, xilografistas
Improvisam rapidamente um faixa, com os dizeres:
“Seja bem-vindo, Homo demens”
O vento forte espalha ao léu as páginas das poesias escritas no barco
Que ao tocarem o mar Incendeiam-se, viram pó
Voam para longe
Com a aparência de uma fênix
Venta muito na Ilha de Santo Amaro.

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